Fígado ainda é acusado injustamente, de causar ressaca

 

Cármen Guaresemin

Do UOL, em São Paulo

0 7h00

 

O fígado abastece o corpo quando ficamos em jejum. VERDADE: o fígado tem reservas de glicose, que é o combustível das nossas células. "A glicose gera a nossa energia", explica o hepatologista Raymundo Paraná. A cirurgiã Liliana Ducatti detalha que o fígado armazena glicose em forma de glicogênio e, numa situação de jejum prolongado, este é liberado para suprir o organismo Getty Images/iStockphoto /Arte UOL.

Já faz parte da crença popular culpar o fígado pelos sintomas de embriaguez ou ressaca, quando na verdade isso se deve mais aos efeitos do álcool sobre o cérebro e o restante do aparelho digestivo.

"A ressaca pode acontecer sem que o fígado esteja agredido. Trata-se de um mal-estar causado pelo efeito anticolinérgico (inibe a produção de acetilcolina, substância química que atua como neurotransmissor) do álcool associado à desidratação. Um produto do metabolismo do álcool gerado no fígado, o acetaldeido (que é mais tóxico que o próprio álcool) explica em parte esses sintomas", afirma o hepatologista Raymundo Paraná, professor da Universidade Federal da Bahia.

A cirurgiã Liliana Ducatti, da equipe de transplante de fígado e órgãos do aparelho digestivo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), afirma que o excesso de metabólitos do álcool causa, entre outras coisas, a desidratação.

"Por isso é importante tomar bastante água. Se sabe que terá uma festa e vai beber no dia seguinte, tome isotônico um dia antes. Ou, na hora, para cada taça de álcool, tome duas de água", ensina a hepatologista Mônica Viana, do Hospital do Servidor Público de São Paulo e do instituto que leva seu nome.

Da mesma forma, medicamentos à base de alcachofra fazem bem, mas não porque irão atuar no fígado, como se acredita, mas porque facilitam a digestão: "Alcachofra diminui o colesterol, mas afirmar que os alimentos amargos ajudam o fígado não tem nenhum fundamento", completa Viana.

O maior:

O fígado não só é a maior glândula como também o segundo maior órgão do corpo humano, perdendo apenas para a pele. Está localizado sob o diafragma e pesa entre 1,3 kg a 1,5 kg em um homem adulto. Já nas mulheres seu peso é um pouco menor e, nos pequenos, é proporcionalmente maior, já que constitui 1/20 do peso total de um recém-nascido. É um órgão tão grande em crianças, na primeira infância, que pode ser sentido abaixo da margem inferior das costelas.

Ele funciona tanto como glândula exócrina, liberando secreções num sistema de canais que se abrem numa superfície externa, como glândula endócrina, já que também libera substâncias no sangue ou nos vasos linfáticos. Além disso, realiza aproximadamente 220 funções diferentes, todas interligadas e correlacionadas.

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Sua atividade principal e mais conhecida é a formação e excreção da bile - fluido que se armazena na vesícula biliar e atua na digestão de gorduras e na absorção de substâncias nutritivas da dieta. As células hepáticas produzem em torno de 1,5 litro de bile por dia.

O fígado também pode ser considerado um gerador de energia para o corpo. Isso porque produz calor, participando da regulação do volume sanguíneo, proporciona uma ação antitóxica importante, processando e eliminando os elementos nocivos de bebidas alcoólicas e gorduras, entre outros. Além de tudo disso, tem um papel vital no processo de absorção de alimentos. Não conseguiríamos viver sem este órgão, responsável por tantas funções.

Cuidado com chás:

Alguns itens que parecem inofensivos, se consumidos com frequência, podem causar um tremendo prejuízo ao fígado. Os chás com supostos efeitos terapêuticos, por exemplo. "A maioria deles não é estudada em ensaios de fase três (que comprovam os efeitos). Sem esses estudos não podemos conhecer a sua eficácia nem a sua segurança. Além disso, não há padronização de dose, nem mesmo controle sobre as sustâncias que acompanham o princípio ativo de uma planta. A ideia de que o natural faz bem é completamente falsa e obedece a um interesse de mercado", afirma Raymundo Paraná.

Segundo o médico, alguns chás que podem causar danos ao fígado são picão preto (carrapicho), sacaca, cáscara-sagrada, espinheira-santa, confrei, erva-mãe-boa, sene e poejo. "Melhor optar por chá de erva-cidreira ou erva-doce. Já tive um paciente que ficou na UTI por causa de excesso de chá verde. Melhor ainda é tomar água", alerta Viana.

Dieta desintoxicante

Quando o assunto é a famosa dieta desintoxicante, todos os profissionais são totalmente contra. "Esta é uma situação absurda de ataque à boa fé das pessoas, são modismos para ganhar dinheiro às custas da ingenuidade alheia. Infelizmente, este tipo de prática está cada vez mais comum no Brasil", afirma Paraná.

"Toda dieta bem equilibrada faz bem para o fígado como para todo o organismo, mas não existe alimento milagroso que faça desintoxicação", afirma Ducatti.

Viana recomenda cuidado com este tema: "Isso porque vive surgindo alguma maluquice 'do momento'. O chá verde que citei é um exemplo. Nada melhor para desintoxicar que água!".

O fígado e a melancolia:

Mais uma crença popular, e não só no Brasil: a de que a bile produzida pelo fígado é a origem da depressão e da melancolia. Aliás, o termo melancolia nasceu da união de duas palavras gregas: melanós (negro) e cholé (bile).

"Na Grécia antiga se tinha esta crença. Como a bile é amarga, acreditava-se que o fígado purgava o amargor da vida, portanto seria responsável pelo humor. Hoje sabemos que não é nada disso", diz Paraná. Ducatti completa, afirmando que as alterações do nosso humor estão ligadas ao funcionamento do cérebro e seus neurotransmissores.

Já Viana admite que vê diferença nos pacientes: "Cuidado com a mágoa! Quanto mais a pessoa estiver magoada, mais lesionado ficará seu fígado, mas isso não tem base científica nenhuma. É algo que eu noto no consultório!"

Gordura e açúcar:

A transformação de glicose em glicogênio, forma de armazenamento de açúcares nas células animais, e seu armazenamento, se dá nas células hepáticas. Ligada a este processo, há a regulação e a organização de proteínas e gorduras em estruturas químicas utilizáveis pelo organismo da concentração dos aminoácidos no sangue, que resulta na conversão de glicose que é utilizada pelo organismo no seu metabolismo.

Nesse processo, o subproduto resulta em ureia (substância presente em nosso organismo que age na função do sistema renal), que é eliminada pelo rim. Em paralelo, existe a elaboração da albumina (proteína presente no plasma sanguíneo) e do fibrinogênio (proteína específica do sangue e representa um papel fundamental na coagulação).

E os alimentos gordurosos seriam muito prejudiciais ao fígado? Para Raymundo Paraná, a gordura faz mal ao organismo como um todo, mas não especificamente ao fígado. Ducatti alerta que esse tipo de alimentação pode gerar uma inflamação, a chamada esteatose hepática.

"Pior ainda é o açúcar. Eu sempre falo para meus pacientes que doce é pior que picanha. A pessoa está triste? Come doce! Brigou com o namorado? Come chocolate. Falam que carne faz mal, mas se comer fraldinha ou filé mignon, sem gordura e com parcimônia, não tem problema", diz Viana.

E não é para pensar que gordura no fígado é privilégio apenas de quem está acima do peso. Magros também podem ter o fígado recheado de gordura. Paraná conta que há pacientes magros com dislipidemia (presença de níveis elevados ou anormais de lipídios e/ou lipoproteínas no sangue) ou resistência à insulina de origem genética e que podem ter gordura no fígado de forma semelhante a dos obesos.

"Sim, pessoas magras podem ter gordura no fígado, especialmente diabéticos que nem sabem que têm a doença", diz Viana. Ela frisa que a pessoa precisa fazer o exame para verificar o colesterol e triglicérides com 12 horas de jejum, mas que muitos laboratórios deixam o paciente esperando e horas a mais causam diagnósticos errados.

Regeneração:

O fígado é um órgão realmente especial e entre suas diferenças em relação aos demais está sua capacidade de se regenerar. É o único órgão de mamíferos capaz de se regenerar. No caso de uma cirurgia ou mesmo da doação de parte dele, em um transplante, por exemplo.

O homem já conhece essa fascinante capacidade desde a antiguidade. A mitologia grega, por exemplo, conta que o titã Prometeu, ao criar o homem, lhes deu o fogo, que era algo exclusivo dos deuses, tornando-o superior a todos animais. Como castigo, foi condenado por Zeus, o deus do Olimpo, a passar a eternidade acorrentado a uma rocha, sofrendo o ataque de uma águia que lhe devorava o fígado todos os dias. Um castigo que já trazia a ideia de que o órgão pode se regenerar.

Segundo a cirurgiã Liliana Ducatti, o fígado se regenera e chega ao tamanho habitual, mas cresce em massa, não exatamente como era. Ela exemplifica: se retiramos o lobo direito, extraímos muitas vezes a veia e a artéria direitas. Este fígado que ficou com lobo esquerdo vai crescer até ficar com o tamanho habitual, mas não irá criar um "novo lobo direito". Também não terá mais a veia e a artéria direitas, que foram retiradas; será um fígado de tamanho tradicional, mas somente com os vasos esquerdos. "Porém, se o peso do fígado que permaneceu for adequado à pessoa, o órgão realizará suas funções normalmente".

O coordenador de transplantes do Hospital Israelita Albert Einstein, Marcelo Bruno de Rezende, conta que tudo depende da compatibilidade do peso e do tipo sanguíneo. "Podemos dividir um fígado adulto e fazer dois transplantes. Ou transplantar um fígado infantil num adulto. O órgão tem de pesar 1% do peso da pessoa. Assim, um adulto de 70 quilos precisará de um fígado de no mínimo 700 gramas. Hoje temos 15 doares para cada milhão de habitantes. A meta é chegar a 20, pois muitos ainda morrem na fila".

"Não me canso de falar que o Brasil é o país que faz o melhor transplante de fígado do mundo. O problema é a espera. São dois a três anos na fila. O melhor é que o transplante seja feito de um órgão que venha de um doador cadáver e que não seja um transplante intervivos, pois o doador nunca sabe o que pode ocorrer no futuro. Precisamos aumentar a campanha de doação de órgãos", ensina a hepatologista Monica Viana, dizendo que o ideal é avisar aos familiares que se é um doador.

 

 

 

 

 

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